Ainda hoje o vitralista Paulo Reis não sabe como o seu nome chegou ao conhecimento de Brigitte e Pierre Delalonde, proprietários do Castelo Boulart, situado no bairro de Saint-Martin, o ponto mais alto de Biarritz, a conhecida estância veraneio da costa do País Basco francês.
“Sem ter feito nada por isso, porque sou um desastre na promoção do meu trabalho, tive a imensa sorte de ser contactado pelos actuais proprietários do Château Boulart, que é monumento nacional, e que tem uma das referências da história do vitral em França”, confessa.
Até este trabalho, concluído no início de 2019 após dois anos de inúmeras deslocações a Biarritz para acompanhar a «empreitada», Paulo Reis tivera uma única encomenda do estrangeiro e incontáveis de todo o Norte de Portugal (ver caixa), algumas tão desafiantes e trabalhosas como a do Castelo Boulart, um edifício de estilo ecléctico, concluído em finais do século XIX, hoje um hotel e espaço para eventos.
Entre os projectos a que deitou mãos “cá dentro” está Sé de Braga, Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, ou na Matriz de Vila do Conde
Sobre as intervenções em imóveis religiosos, o vitralista explica que, por mais simples que sejam, exigem capacidade de interpretação do que pretende quem encomenda. “Sendo templos religiosos é necessário que a concepção tenha reconhecível toda a imagética religiosa que lhe está associada ou pedida e, ao mesmo tempo, conferir-lhe a minha leitura e o meu pensamento sobre o que é, ou que pretendo do meu vitralismo, com toda a sua contemporaneidade”, afirma.
Mas Biarritz é Biarritz. Mesmo agora “ameaçada” pela “arrogância” e “desprezo” dos “homens de dinheiro perante a passividade dos governantes eleitos”, como denunciam colunistas da esquerda e do centro direita na imprensa local, Biarritz continua a elegante, vaidosa e cheia de glamour. Talvez não tanto como em meados do Séc. XIX quando pelas suas praias arenosas se passeavam nomes sonante da realeza europeia, nomeadamente Eugénia, a última Imperatriz de França, Oskar II, Rei da Suécia, a Rainha Vitória, ou gente das letras como o irlandês Oscar Wilde. O último grande evento que por lá aconteceu recentemente foi a cimeira que reuniu os sete países mais ricos do mundo (G7), em Agosto de 2019.
“ÁGUA PELAS BARBAS”
A Paulo Reis pedia-se que fizesse o restauro “nada mais, nada menos” da obra maior de Eugène Amédée Stanislas Oudinot de la Faverie, um dos importantes artistas de vitral do séc. XIX.
“Foi um trabalho gigantesco a todos os níveis, não só pela escala, mas sobretudo pela complexidade técnica, e pelo estado extremamente degradado em que se encontravam os vitrais”, afirma.
De início, conta, “houve desconfiança sobre as minhas capacidades técnicas para a execução do trabalho, seja por parte dos proprietários, mas sobretudo por parte das entidades fiscalizadoras ligadas ao património”.
A desconfiança, contudo, foi “rapidamente sanada” com o decorrer do trabalho.
“Foi um trabalho com exigências técnicas que me deram água pelas barbas” porque, diz, “o autor destes vitrais recorria amiúde a fórmulas secretas de óxidos de pintura, e muitos outros ‘requintes de malvadez’”.
“À força de muita pesquisa e sobretudo experimentalismo, fui ultrapassando os obstáculos que me foram surgindo. Foi um trabalho que teve tanto de dificuldade, como de gozo, e foi sobretudo muito gratificante, isto a todos os níveis”, acrescenta.
E remata: “não é todos os dias que tenho o estatuto de ‘mestre’, ou ‘artista’, que me proporcionam condições extraordinárias, que tenho a sorte de trabalhar num sítio fantástico e numa obra soberba e com toda a carga histórica inerente”.
Sobre a obra feita em Portugal, o artista reconhece que teve «a imensa sorte de ter entrado pela porta grande», com grandes trabalhos de restauro em monumentos e edifícios públicos do estado, através dos então IPPAR (o Instituto do Património) e a DGEMN (a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais), seja através de subcontratação, ou de adjudicação directa.
ARTISTA E OBRA
“Sou Paulo Reis. Nasci no Porto, no início dos anos sessenta do século passado, e já vou para velho, portanto”, é assim que se apresenta.
Vive em Braga desde o final dos anos oitenta. Escolheu a Cidade dos Arcebispos pelas “mesmas razões que toda uma geração de então jovens portuenses: a falta de acesso à habitação”.
“E entre ir viver para os subúrbios do Porto, e Braga, cidade com a qual já tinha alguns laços, optei pela última”, afirma.
Estudou no Porto, na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, que era há época «uma excelente escola, com óptimas oficinas, e com um corpo docente fantástico, de gente mesmo muito qualificada, onde se aprendia as coisas “à antiga”, e onde “se punha as mãos na massa”», recorda.
Na ‘Soares dos Reis’, acrescenta, «não havia formação específica em vitral, porque também não havia em parte alguma do país, mas deu-me as bases para iniciar a actividade na área».
Após alguns anos a trabalhar por conta própria, no fabrico de peças decorativas em vidro, e pequenas obras de vitral, “e sempre o vidro”, a “paixão de toda vida”, deu início à actividade “a sério”.
Entre as obras que efectuou constam ainda, entre muitas outras, quer de concepção quer de restauro dos vitrais do Paço Arquiepiscopal, do Mosteiro de Leça do Balio, da Matriz de Campo, da Matriz da Vila do Gerês, ambas em Terras de Bouro, do Tribunal de Fafe, Matriz de Fafe e da Igreja Românica de Arões, também em Fafe.
Paulo Reis destaca dois trabalhos “marcantes” na sua carreira, o primeiro deles o fabrico de painéis de vitrais para a família ‘dos Santos’, do anterior presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, o que “agora soa um pouco ‘a politicamente incorrecto’, dado os acontecimentos recentes”…
“Outro trabalho que ficará para sempre na minha memória, é o do restauro dos vitrais da Igreja Matriz de Vila do Conde, que tem, muito provavelmente, o conjunto de vitrais mais fabuloso do Norte, e talvez de todo o país”, sublinha, explicando que se tratam de vitrais de origem francesa, do início do Séc. XX, “de soberba qualidade pictórica e técnica”, sobretudo o enorme painel por cima da porta principal do templo, e que foi fabricado num atelier de Bordéus.
Actualmente está a negociar um trabalho de “grande dimensão” para um edifício “icónico’ do Minho – “e do país”- , e vários trabalhos de média dimensão para templos minhotos, tanto de restauro, como de concepção.
Fernando Gualtieri (CP 7889 A)